Ao contrário do assédio sexual, já tipificado no Código Penal, o assédio moral ainda não faz parte, a rigor, do ordenamento jurídico brasileiro. Em âmbito municipal, existem mais de 80 projetos de lei em diferentes cidades, vários deles já aprovados e transformados em lei – em São Paulo (SP), Natal (RN), Cascavel (PR), Guarulhos (SP) e Campinas (SP), entre outros.
No âmbito estadual, o Rio de Janeiro foi o pioneiro na adoção de legislação específica sobre o tema – a Lei Estadual nº 3.921, de agosto de 2002, voltada especificamente para os órgãos dos três Poderes estaduais, repartições, entidades da administração centralizada, autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e mesmo concessionárias de serviços públicos. A lei proíbe "o exercício de qualquer ato, atitude ou postura que se possa caracterizar como assédio moral no trabalho, por parte de superior hierárquico, contra funcionário, servidor ou empregado que implique em violação da dignidade desse ou sujeitando-o a condições de trabalho humilhantes e degradantes." Em Estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná e Bahia há projetos semelhantes em tramitação.
Em nível federal, tramitam no Congresso Nacional propostas de alteração do Código Penal, da Lei nº 8.112 (que instituiu o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos) e outros projetos relativos ao tema. Um deles, o PL nº 2.369/2003, encontra-se pronto para entrar em pauta, e caracteriza o assédio moral não como crime, mas especificamente como ilícito trabalhista, podendo gerar o direito à indenização.
O problema não é exclusividade brasileira. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em pesquisa realizada há mais de dez anos – em 1996 – detectou que 12 milhões de trabalhadores na União Européia já viveram situações humilhantes no trabalho que acarretaram distúrbios de saúde mental. No Brasil, pesquisa pioneira realizada pela médica do trabalho Margarida Barreto, em sua tese de mestrado, constatou que 42% dos trabalhadores entrevistados foram vítimas de assédio moral nas empresas.
Diante desta realidade, a Justiça do Trabalho tem se posicionado independentemente da existência de leis específicas. "A teoria do assédio moral se baseia no direito à dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como prevê o artigo 1º, inciso III, da Constituição", observa a ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, do Tribunal Superior do Trabalho. "É possível citar também o direito à saúde, mais especificamente à saúde mental, abrangida na proteção conferida pelo artigo 6º, e o direito à honra, previsto no artigo 5º, inciso X, também da Constituição", acrescenta.
Definição
No julgamento de casos em que se alega a ocorrência de assédio moral, alguns aspectos são essenciais: a regularidade dos ataques, que se prolongam no tempo, e a determinação de desestabilizar emocionalmente a vítima, visando afastá-la do trabalho. Trata-se, portanto, de um conjunto de atos nem sempre percebidos como importantes pelo trabalhador num primeiro momento, mas que, vistos em conjunto, têm por objetivo expor a vítima a situações incômodas, humilhantes e constrangedoras.
A lista de procedimentos e atitudes passíveis de enquadramento como assédio moral é extensa. A lei do Rio de Janeiro relaciona circunstâncias como atribuir tarefas estranhas ou incompatíveis com o cargo, ou em condições e prazos inexeqüíveis; designar funcionários qualificados ou especializados para funções triviais; apropriar-se de idéias, propostas, projetos ou trabalhos; torturar psicologicamente, desprezar, ignorar ou humilhar o servidor, isolando-o de contato com colegas e superiores hierárquicos; sonegar informações necessárias ao desempenho das funções ou relativas a sua vida funcional; e divulgar rumores e comentários maliciosos ou críticas reiteradas e subestimar esforços, afetando a saúde mental do trabalhador.
A essa lista, acrescentam-se ainda atitudes como a "inação compulsória" – quando a chefia deixa de repassar serviços ao trabalhador, deixando-o propositalmente ocioso –, a imposição de "prendas" que o exponham ao ridículo, em caso de não atingimento de metas, entre outros. Trata-se, portanto, de práticas que resultam na degradação das condições de trabalho, por meio de condutas negativas dos superiores hierárquicos em relação a seus subordinados, acarretando prejuízos práticos e emocionais para o trabalhador e a empresa ou órgão. Os colegas, temerosos ou indiretamente interessados no afastamento da vítima, muitas vezes endossam o assédio moral.
A ministra Cristina Peduzzi, porém, ressalta que o assédio moral difere do assédio sexual. Este, conforme definido na lei, se caracteriza pela relação "vertical descendente" – ou seja, é praticado por um superior hierárquico, que usa de sua posição para obter favores sexuais dos subordinados. O assédio moral, porém, pode também ser horizontal – entre colegas de mesma hierarquia – ou mesmo "vertical ascendente" – quando parte de um grupo de subordinados e se dirige a seu superior direto. Trata-se, portanto, de uma circunstância individual ou coletiva.
O ministro João Oreste Dalazen explica que o assédio se caracteriza "pela violência psicológica extrema à qual uma pessoa é submetida por um chefe ou mesmo por um colega de trabalho". Ele ressalta, porém, que uma situação isolada não deve ser enquadrada como assédio moral. "É preciso haver uma perseguição sistemática", observa, lembrando que humilhações infringidas entre colegas de trabalho são mais raras. "A maioria dos casos é de reclamações contra assédios morais impostos por chefes hierárquicos a subordinados, aos quais submetem a situações de violência psicológica."
Chicotes, ofensas e ameaças
Na prática, a "criatividade" dos assediadores supera as sucintas descrições legais. Os processos que chegam à Justiça do Trabalho buscando reparação por danos causados pelo assédio moral revelam que, em muitas empresas, o ambiente de trabalho é um circo de horrores. Ameaças, ofensas, sugestões humilhantes, isolamento e até agressões físicas fazem parte do roteiro. Em processo contra a Frevo Brasil Indústria de Bebidas Ltda., da Bahia, uma trabalhadora afirmou que o gerente de vendas "a teria ridicularizado, obrigando-a a participar de atos libidinosos com vendedores e clientes, assim como tentou estuprá-la, causando-lhes lesões corporais graves".
Em outro processo, envolvendo o HSBC Bank Brasil S/A, os autos registram "a conduta reprovável do gerente ao qual estava subordinado o empregado, que, utilizando-se de um chicote, cobrava a produção dos empregados". De acordo com depoimentos de testemunhas, o gerente, além de transformar o chicote ganho de um empregado em "ferramenta de trabalho", chamou o trabalhador que ajuizou a ação de incompetente e jogou sua gaveta no chão na frente de um cliente. Durante um período em que o empregado esteve afastado, o mesmo gerente "ligava diariamente e mencionava que iria convencê-lo, pelo cansaço, a voltar a trabalhar".
Nas Lojas Colombo S/A, de utilidades domésticas, no Rio Grande do Sul, realizavam-se reuniões em que os vendedores "eram chamados de ignorantes, burros, parasitas", e o gerente os ameaçava de perda de emprego caso não cumprissem suas cotas. Outra prática, alvo de várias reclamações trabalhistas, é o pagamento de "prendas". Na empresa Irmãos Farid Ltda., revendedora de bebidas e refrigerantes de Conselheiro Lafaiete (MG), os vendedores que não atingiam suas metas eram obrigados a pagar flexões, correr em volta de uma praça pública e usar um certo "capacete de morcego", diante dos colegas e das pessoas que estivessem na praça no momento. Em Belo Horizonte, a Companhia Brasileira de Bebidas aplicava castigos vexatórios semelhantes, submetendo seus empregados a constrangimentos como desfilar de saia rodada, perucas e batom diante dos colegas e mesmo de visitantes.
O processo trabalhista considerado pioneiro na abordagem do assédio moral no Brasil veio do Espírito Santo. Nele, o Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região classifica e enquadra como assédio moral as perseguições sofridas por um técnico de publicidade e propaganda: "A tortura psicológica, destinada a golpear a auto-estima do empregado, visando forçar sua demissão ou apressar sua dispensa através de métodos que resultem em sobrecarregar o empregado de tarefas inúteis, sonegar-lhe informações e fingir que não o vê, resultam em assédio moral, cujo efeito é o direito à indenização por dano moral, porque ultrapassa o âmbito profissional, eis que minam a saúde física e mental da vítima e corrói a sua auto-estima", registra o acórdão do Recurso Ordinário nº 1315.2000.00.17.00.1, relatado pela juíza Sônia das Dores Dionízio. "No caso dos autos, o assédio foi além, porque a empresa transformou o contrato de atividade em contrato de inação, quebrando o caráter sinalagmático do contrato de trabalho e, por conseqüência, descumprindo a sua principal obrigação que é a de fornecer trabalho, fonte de dignidade do empregado", conclui.
Levantamento realizado em 2006 pela ministra Maria Cristina Peduzzi indica que o tema, embora ainda recente, já foi examinado por quase todos os 24 TRTs, e que a partir de 2005 ocorreu um substancial aumento, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. "Os fatos mais recorrentes são a inação compulsória – quando o empregador se recusa a repassar serviço ao empregado –, humilhações verbais por parte de superiores (inclusive com palavras de baixo calão), coações psicológicas visando à adesão do empregado a programas de desligamento voluntário ou à demissão", ressalta a ministra.
Os resultados dos processos que envolvem alegações de assédio moral, quando favoráveis ao empregado, geram basicamente três tipos de reparação. A primeira é a rescisão indireta do contrato de trabalho, hipótese semelhante à justa causa, só que em favor do empregado, que se demite mas mantém o direito ao recebimento de todas as verbas rescisórias, como se tivesse sido demitido sem motivação. Outra é a indenização por danos morais, que, na esfera trabalhista, visa à proteção da dignidade do trabalhador. A terceira é a indenização por danos materiais, nos casos em que os prejuízos psicológicos causados ao trabalhador sejam graves a ponto de gerar gastos com remédios e tratamentos.
Além dessas, há a hipótese de dano moral coletivo. Em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Norte, a AMBEV – Companhia de Bebidas das Américas foi condenada pela Justiça do Trabalho ao pagamento de R$ 1 milhão por assédio moral praticado contra empregados que não atingiam cotas de vendas estabelecidas pela empresa e eram constrangidos a receber e ouvir insultos, pagar flexões de braço, dançar "na boquinha da garrafa", assistir a reuniões em pé, desenhar caricaturas num quadro, fantasiar-se e submeter-se a outras "prendas". A sentença foi confirmada em agosto do ano passado pelo TRT da 21ª Região, no julgamento do Recurso Ordinário nº 01034-2005-001-21-00-6. Nos casos de dano moral coletivo, a indenização reverte ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Os valores das condenações em processos individuais, na maior parte dos casos, variam entre R$ 10.000,00 e R$ 30.000,00. "Há caso de R$ 3.500,00 para uma relação que durou 25 dias, e outro de R$ 70.000,00 para um contrato de oito anos", exemplifica a ministra Cristina Peduzzi. O ministro Ives Gandra Martins Filho, num das primeiras decisões do TST relativas ao tema (RR 122/2001-036-12-00.0), ressalta que a ausência de critérios específicos para fixação de dano moral na legislação trabalhista "leva o julgador a lançar mão do princípio da razoabilidade, cujo corolário é o princípio da proporcionalidade, pelo qual se estabelece a relação de equivalência entre a gravidade da lesão à imagem e à honra e o valor monetário da indenização imposta."
A fixação de valores para dano moral, conforme vem sendo adotada pelo TST, tem dupla finalidade: compensar a vítima pelo dano moral sofrido e, também, punir o infrator, a fim de coibir a reincidência nesse tipo de prática. O que se busca é um possível equilíbrio entre as "possibilidades do lesante" – o porte e o poder econômico da empresa – e as "condições do lesado" – a extensão do dano causado.
Fonte: Tribunal Superior do Trabalho e site Consultor Jurídico de 01/02/2007
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